Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Descrição de chapéu Todas

Ossaim, o orixá das ervas e dos segredos da cura

Condena-se o 'curandeirismo', mas farmacêuticas lucram com o poder de nossas plantas

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Nas tradições das religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, o axé é a força vital que permeia todos os seres vivos, os lugares e as coisas, manifestando-se com maior ou menor intensidade. O axé constitui os elementos da natureza e flui dinamicamente entre seres, objetos e encontros.

É essencial cuidar do axé, mantê-lo equilibrado e forte. Sua resistência depende de diversos fatores, como o tempo de vida, as condutas corretas ao longo da jornada e o tempo de entrega do Ori —a divindade pessoal que guia cada pessoa iniciada— ao orixá correspondente. Quando o axé se enfraquece, torna-se suscetível a ser subtraído, afetando diretamente a força vital.

Quando apropriado sem troca, um axé pode se diluir e a força se esvair rapidamente. A fagulha vital dura pouco fora de sua corrente de transmissão; as faíscas se dissipam e o axé, eventualmente, se apaga. No contexto brasileiro, essa dinâmica reflete tristemente a exploração de conhecimentos tradicionais, especialmente na história da farmacologia e da medicina.

Há pilares fundamentais para a manutenção de um axé forte. O primeiro é a conexão com a ancestralidade. A corrente de transmissão do axé acompanha gerações que vieram antes de nós e estava presente junto ao povo sequestrado e escravizado por séculos no Brasil. Mesmo sob opressão, o povo resistiu, mantendo viva a fé nas divindades.

Outro ponto essencial para o fortalecimento é a união comunitária necessária para sua geração, preservação e compartilhamento. O axé se constrói na interação de forças em comunidades comprometidas com o sagrado e com a celebração das divindades.

O axé está presente em toda a natureza e de cada folha pode ser extraído um poder de cura. Nesse contexto, Ossaim —também conhecido como Ossanha— é o orixá das folhas, das ervas e dos segredos da cura, reverenciado como o guardião dos mistérios das plantas medicinais e dos encantamentos. Sua sabedoria é crucial para as práticas de cura e para a confecção de amuletos e remédios nas religiões de matriz africana.

Ilustração de fundo verde, com a figura do Orixá Ossain ao centro. Ele é um homem negro e está equilibrado em uma de suas pernas, usa roupas verdes revestidas de folhas, carrega uma cabaça aberta sobre a cabeça, com várias folhas e na mão direita leva sua ferramenta: uma haste de ferro composta por sete pontas.
Aline Bispo/Fohapress

Segundo um de seus itãs, Ossaim detinha o conhecimento exclusivo sobre as folhas e suas propriedades curativas e não compartilhava essa sabedoria com os outros orixás. Sem as folhas, os orixás eram incapazes de realizar rituais de cura e proteção, o que gerava grande frustração.

Um dia, Xangô, o rei, decidiu que era necessário distribuir o poder das folhas entre os orixás. Ele consultou Exu, o orixá da comunicação, para encontrar uma solução e, então, contou com a ajuda fundamental de sua companheira Iansã, que provocou uma ventania tão forte que espalhou folhas de Ossaim por toda a Terra. Cada orixá conseguiu pegar algumas de suas folhas, apropriando-se de parte do segredo.

Apesar disso, Ossaim permaneceu o guardião do axé das folhas e qualquer ritual que envolva o uso de ervas demanda sua permissão e presença.

Esse itã ilustra como Ossanha, conhecido por sua astúcia, discrição e independência, assume a necessidade de cuidar da natureza, protegendo-a contra a exploração desmedida. Ao mesmo tempo, permitir que parte de seu segredo fosse compartilhado era essencial para que mais pessoas pudessem acessar o poder curativo das folhas.

A folha que cura e a folha que mata podem ser a mesma, e tanto a dose como o modo de preparo fazem parte da sabedoria dos povos negros e indígenas.

Como neta de benzedeira, que curava minhas náuseas com chá de boldo, valorizo tudo o que o orixá permitiu que os humanos soubessem. Ainda mais no nosso contexto histórico, que, durante o projeto oficial de perseguição às religiões afro-brasileiras, criminalizou a prática do curandeirismo, palavra que se tornou pejorativa e foi associada a Ossaim.

Ao mesmo tempo, empresas farmacêuticas do Norte Global patentearam e lucraram com os princípios ativos de plantas das matas brasileiras, valendo-se, em muitos casos, desse mesmo conhecimento que foi criminalizado. As empresas de cosméticos fizeram o mesmo, bem como outros segmentos da sociedade capitalista.

Diante dessa insaciável fome do poder colonial, Ossaim precisa ser estrategista e ninguém como ele sabe melhor proteger os segredos da natureza e dosar aquilo que a mata pode oferecer.

Para o bem do meio ambiente, há mistérios que devem permanecer mistérios.

Ewé, Ossaim!

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